quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Back to School - uma livre-tradução

Fiquei com tanta vontade de poder mostrar isto aos meus alunos e outros colegas não-adeptos do inglês (e também acho que andava com uma vontadezinha de traduzir alguma coisa menos formal), que acabei traduzindo eu mesmo, de modos que qualquer problema do gênero é minha culpa, minha máxima culpa. Tentei entrar em contato com a autora antes, mas só há a possibilidade de fazê-lo por intermédio da própria revista Piauí e de seus editores, num daqueles formulários impessoais de site... francamente, se alguém ficar muito ofendido pela tradução e publicação, pede que eu tiro. Ou então tire as calças pela cabeça.

É um post do blog de uma moça americana chamada Flora Thomsom-Deveaux, estudande de Princeton que, sofrendo de uma paixão agude pela música e literatura brasileira, veio sanduichar seu curso de letras por aqui, na PUC-RJ. O blog todo vale à pena: ela escreve bem (mas em inglês, ainda que por vezes se beneficiando da mistura dos dois idiomas) e é uma forma muito interessante de ver nosso país e cidade. Segue minha versão.
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DE VOLTA À ESCOLA

Tenho uma confissão a fazer. A PUC é mais difícil do que Princeton.

Talvez não em termos de quantidade de estudo, ou de dificuldade das leituras, ou mesmo pelo fato de todas as minhas aulas serem em português. A PUC é difícil porque parece o ensino médio. Sei que só faz dois anos, mas eu tinha me esquecido completamente de como é estar em uma sala de aula e sentir que ninguém queria estar lá. "Vocês têm o direito de perder até 25% das aulas," explicava tediosamente um professor, enquanto estudantes torpedeavam pelo celular no fundo da sala. "Se vocês copiarem da Wikipedia em suas avaliações, nós descobriremos", dizia outro. Em dado momento do curso de literatura brasileira, o professor estava resolutamente disputando com 3 outras conversas sussurradas; em um seminário de história com 4 inscritos, o bondoso professor chegou a ter de calar a boca de 50% dos estudantes.

É difícil de se lidar com a PUC porque as pessoas não parecem ligar para as aulas, ou saber porque estão lá. Certo, não vale para todos. Nós quatro conversávamos antes do seminário de história, e um dos alunos está trabalhando 10 horas por noite para escrever sua tese porque tem uma filha de um ano. Alguns poucos parecem genuinamente interessados nos cursos.

Por vezes, porém, nem eu posso entender porque. Já testemunhei professores entrando em sala e passando o tempo todo lendo em voz alta. Não estou falando de ler anotações preparadas para aquilo, mas de repetir o texto selecionado e ocasionalmente elaborar a partir dele. Minhas aulas de "Pobreza e Desigualdade Social" tiveram uma discussão animada noutro dia, mas isto foi somente porque todo mundo começou a reclamar do alto custo de vida no Rio. (Se tem algo que os brasileiros amam é reclamar do preço da comida. Sério. Eu juro, posso chegar para qualquer carioca e resmungar sobre quanto custa o queijo na zona sul, e podemos continuar com isso por pelo menos meia hora. Amizade instantânea.)

"Ah, vai ser tranquilo pra você," disse um dos estudantes da PUC quando mostrei as disciplinas que pretendia cursar. "Estas são todas da área de humanas. Então basicamente a única coisa que você tem que fazer é aparecer em algumas aulas e ler os textos antes da prova." Ri nervosamente, torcendo para que ele estivesse brincando, mas não parece ser o caso.

Posso ter sofrido uma pressão incrível em Princeton, lendo e escrevendo pelo menos 10 vezes mais, mas eu gostava do meu trabalho. E todos ao meu redor também. Eu saía nas nuvens de um seminário com uma discussão realmente provocadora; aqui, tenho de aparecer na aula, sentar por 2 horas, e responder à chamada (sim, eles fazem chamada). Às vezes parece mais com uma punição disciplinar do que com uma faculdade. Então, sim, a PUC é difícil.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Porque "Zeitgeist: Moving Forward" é marxismo de segunda

Como falei, Marx nesse filme é um caso à parte.

Falar do homem é, pelo menos desde 1917, muito complicado. De certa forma isso melhorou depois da Guerra Fria; por outro lado, não. Continua complicado porque, por exemplo, o título deste post continua podendo ser interpretado como se "marxista" fosse xingamento, e como se eu estivesse me alinhando com os reaças de quem o filme faz tanto esforço para se defender.

Não é, então quero deixar bem claro: Marx é um autor sensacional, um dos maiores de todos os tempo, a quem não se aplicam a imensa maioria dos rótulos que lhe são tachados. Quase todos que falam mal de Marx não tiveram realmente nenhum contato direto com ele, não fazem muita ideia do que ele realmente diz, ou simplesmente não oferece um contra-argumento à altura. Aqueles que o criticam com propriedade, dificilmente negam o respeito do qual sua obra é digna.

Do outro lado, tem o pessoal para quem "marxista" é o melhor dos elogios - quando o próprio Marx teria declarado, ainda em vida: "não sou marxista". É, no mínimo, para se pensar...

A pilhagem sem-vergonha de "Zeitgeist" em cima do arcabouço conceitual marxista é particularmente incômoda, não só pq aparece no filme inteiro, como também por ser explicitamente negada ao final dele. Eles inventam nomes novos para "economia de mercado", "valor de troca", "valor de uso", e um sem-número de outros termos, e fingem que não é com eles - fazem, inclusive, as mesmas críticas ao liberalismo (e aí fazem questão de citar livros e nomes), e apontam o mesmo tipo de solução ("de cada um segundo suas capacidades, a cada um conforme suas necessidades").

Então, é claro: "Zeitgeist" é comunista. Ele propõe a propriedade comum dos meios de produção, a abolição da forma mercadoria (que chama de... ah, sei lá, de outro nome imbecil qualquer) e até do dinheiro (sendo que este último, até onde me consta, nem Marx sugeriu). A preocupação legítima com o preconceito que os rótulos "comunista" e "marxismo" despertam, particularmente nos EUA, não pode justificar falsidade ideológica deste tamanho; e, não importa o quanto neguem, é evidente que toda a crítica feita à sociedade de mercado, no filme, tem um viés marxista bem explícito.

Então, novamente: qual o problema disso? Contanto que a mensagem se espalhe... Mas a verdade, em si, não pode ser dita pelas palavras, não está contida nelas. O que ouvimos não é o "conteúdo" da mensagem, "apenas" sua forma - a divisão mensagem-conteúdo é útil, mas, a rigor, não é verdadeira, pq nenhuma mensagem tem conteúdo; ela é forma "pura". Só o receptor pode tentar, pela interpretação, "remontar" ao conteúdo que o formulador da mensagem pretendia transmitir. Assim, a forma pela qual as coisas são ditas é o que mais pode e deve ser criticado; uma coisa mal dita costuma ser "mal" interpretada, e a intenção do autor se perde.

Particularmente, não expor as origens de seu pensamento, não fazer referências, além de deixar o receptor no escuro e dificultar o acesso dele a outras versões de mensagens semelhantes, tem uma outra propriedade retórica a qual não dei o devido destaque: ela tira a mensagem de seu contexto histórico. Isto tem, além de fazer o autor parecer o rei da cocada preta, como eu disse, uma vantagem mais ou menos legítima, de evitar que a mensagem caia em filtros do preconceito; e outra bem malandra, de evitar todas as críticas (legítimas) que as versões anteriores do mesmo tipo de pensamento sofreram.

Exemplo: aquela papagaiada de "memória implícita" que é, basicamente, o inconsciente do Freud. Por um lado, isto ajuda a vencer a resistência à psicanálise, que não é pequena, especialmente nos EUA. Por outro lado, desvincula a tal ponto o argumento de sua origem, que pode tranquilamente levar alguém a aceitar a "memória implícita" e, ao mesmo tempo, dizer que a psicanálise é uma palhaçada - quando, sem a psicanálise, aquela ideia "maravilhosa" nunca existiria! Coisa parecida acontece com Marx: alguém que assiste o filme pode muito bem achar que a luta de classes é uma bobagem, e concordar com tudo que eles disseram! O bônus? Zeitgeist parece escapar de todas as inúmeras críticas, muitas delas perfeitamente razoáveis, já feitas tanto ao marxismo quanto à psicanálise, e que se aplicam sem tirar nem por ao que eles estão dizendo. Eles inventam a roda e sobra pro espectador descobri que é melhor fazê-la de borracha do que de pedra.

Pode-se até dizer "isso tudo é válido pra você, que estuda isto, mas não é óbvio para a maioria das pessoas, que precisa de uma versão acessível a estas ideias". Ótimo: isto é mais motivo, e não menos, para mostrar a essas pessoas que há muito mais para se aprender, muito mais gente boa que já disse isso e muitas outras coisas; e outro tanto que disse o oposto, que contestou isso e disse que, por exemplo, abolir a propriedade é mais perigoso do que mantê-la, ou que é impossível, e por aí vai.

Além disto, já temos coisas acessíveis, mas muito menos divulgadas. Prefiro esta versão animada do Manifesto Comunista a toda a crítica à economia de mercado de "Zeitgeist". Surplus é uma maneira muito mais interessante de estimular a reflexão sobre o consumismo.

Pode-se alegar, também, que Zeitgeist não é marxista por duas coisas. Primeiro, porque Marx, e é difícil negá-lo, está ligado a um projeto produtivista, defende que o comunismo surgirá como uma forma de aumentar ainda mais a produção, e não apenas de distribuí-la melhor, enquanto o filme tem uma postura anti-produtivista. Segundo, e o filme trata isto como se tivesse desvalidado tudo que tinha sido pensado antes, estamos diante da possibilidade muito real do esgotamento dos recursos naturais, funcionando com um sistema econômico que prevê crescimento indefinido. São duas ótimas críticas/acréscimos; mas também já foram feitas muito antes, inclusive por ex-marxistas. Na América Latina, Edgardo Lander já apontava justamente estas duas coisas e a ligação entre elas uma boa década atrás, e mesmo então já não era exatamente novidade (infelizmente não lembro em que artigo ele o fez). A crítica ao produtivismo está em voga desde "O elogio ao ócio", do Russel, de 1932. E por aí vai, com coisas sensacionais como este artigo do Gorz sobre o automóvel.

E o que se critica no marxismo e pode ser legitimamente criticado em "Zeitgeist"? Acho que, pra falar direito, teria de fazer um novo post sobre isso. Fico com o problema de como distribuir justamente os bens, coisa que o filme propõe fazer com "uma pesquisa", como se as pessoas fossem capazes de automaticamente ter desejos e necessidades harmônicas, e essa não fosse uma das maiores dificuldades de todos os tempos - uma crítica, aliás, que se deve em boa parte à influência de Freud nos estudiosos de Marx. Olha aí porque é uma merda você não dizer de onde vêm as ideias.

Pior do que isto é a ideia de que se podem usar critérios científicos para organizar a sociedade. Este cientificismo absurdo, que é o ápice do projeto positivista, que faz crer na neutralidade da ciência (coisa que não existe), que mascara toda a disputa de poder que caracteriza a sociedade (e que eles acabaram de expor!), é tão ruim que chega a ser caricato. Eles até sugerem deixar um computador a cargo do gerenciamento de toda a produção do mundo - um negócio tão perigosamente distópico que até Hollywood já mostrou, várias vezes, que não é uma ideia tão boa quanto parece.


De resto, vale repetir algo que certamente devia ser muito mais repetido: a ciência não nos diz nada sobre o certo e o errado, nada sobre justiça. Estas são questões éticas e políticas. Não existe fórmula mágica para resolvê-las, não existe um caminho simples e mais fácil. O caminho é, justamente, o caminho da política, que o filme tanto desacredita - não a política institucional, o Estado, etc. A política como capacidade dos seres humanos, em conjunto, decidirem como querem se organizar e o que querem fazer de suas próprias vidas.

Isto significa também que, evidentemente, concordo com muita coisa que o filme defende. Sim, a economia de mercado, o fetiche da mercadoria, o consumismo ilimitado, além de nos transformar em robôs alienados, gerar violência, desigualdade, doença e morte, está caminhando para aniquilar todos os recursos do planeta e a própria espécie humana. Temos mesmo de derrubar o sistema vigente e inventar algo novo e melhor, pra ontem. Mas não o que o filme sugere - botar as coisas "na mão da ciência" não só é impossível, mas tentar fazê-lo é andar na rota da tirania, da desigualdade, enfim, piorar o que já está ruim.

Nota: Eu estava escrevendo um post muito maior sobre isso, mas percebi que não teria mais tempo hábil para fazê-lo, até porque a fúria que motivou meu primeiro post já deu uma arrefecida. Fica postado o que tenho; um dia pode ser que eu faça mais.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Porque "Zeitgeist: Moving Forward" é uma merda

Assistir "Zeitgeist: Moving Forward" foi dureza: comecei incentivado pelas indicações dos amigos de facebook e twitter, mas só consegui terminar quando encontrei determinação no desejo de poder criticar com propriedade. Porque o filme é ruim, minha gente, muito ruim; mas isso não é o pior. O pior é ele ser de uma ruindade do tipo contagiosa.

(Antes de continuar, só um adendo: este é o terceiro filme da série. Não vi os outros dois - e agora é que não verei mesmo. Como o nome é grande, escreverei apenas "Zeitgeist", mas tenham em mente que me refiro somente a "Zeitgeist: Moving Forward", porque seria injusto botar os outros no mesmo saco. Apesar de que, sinceramente, duvido que estejam fora dele.)

"Zeitgeist" (expressão alemã que significa, traduzindo grosseiramente, "espírito de época"; ponho isto aqui porque fui conferir e... não entendi o porquê do nome; se alguém puder explicar, ficarei feliz) me lembrou imediatamente - e isso é uma das piores ofensas que posso conceber para um filme - "O Segredo", tanto em seu jeitão quanto no efeito que causa. O jeitão é o mesmo estilo brega e óbvio daqueles documentários do NatGeo ou do History Channel que se propõem a investigar cientificamente eventos bíblicos interpretados de maneira literal, ou qualquer outra idiotice do gênero ("Noé poderia mesmo ter construído sua Arca? Como ele teria colocado todos os animais lá dentro?", "Como Jesus transformou a água em vinho?", e por aí vai). O filme fala em algo ou alguém e imediatamente passa uma imagem daquilo - ao falar de Locke, um retrato dele; ao falar em dinheiro, maços e maços de notas; ao falar de Noé, um ator fantasiado, de barba branca e cajado (tá, Noé não aparece no filme, estou só ilustrando). Não entendo muito de cinema, mas entendo o suficiente pra saber que isto não é a marca de um grande documentário; é ou má direção, que quer se fazer explícita demais, ou uma mal-intencionada técnica de persuasão, que quer fixar imagens e ideias, no melhor estilo publicitário - no primeiro caso, peca por tratar o espectador como um burro; no segundo, como otário.

A outra coisa que "O Segredo" e "Zeitgeist" fazem, e os documentários da NatGeo e History Channel não, porém, é chamar "especialistas" que não são especializados no assunto em pauta. No caso de "O Segredo", posso estar sendo um pouco injusto: primeiro, porque o filme é tão ruim que só consegui ver 20 minutos (aliás, eu e o resto das 6 pessoas que estavam assistindo, 3 das quais caíram no sono); segundo porque, e não sei até onde isso depõe contra ou a favor do filme, o assunto dele, por definição, não admite muito o conhecimento especializado (provavelmente por ser uma grande charlatanice, mas isso não vem ao caso). Já os assuntos de "Zeitgeist" o admitem - e, no entanto, vemos jornalistas depondo sobre economia, geneticistas sobre psicologia e engenheiros sobre a organização social. Não tenho nenhum problema com pessoas falando sobre assuntos de fora de suas áreas (até aí, também não defendo a supremacia do conhecimento científico, como o filme) - pelo contrário, isto é importante e saudável. Mas quando chama-se alguém pelo seu depoimento como especialista... aí é importante que ele seja, de fato, um especialista.

Mas tudo isto só evidencia algo que é tendência no documentário, e que é análogo aos truques de mágica (o que é irônico, já que, pelo que entendi, no primeiro filme Peter Joseph acusa muitos outros de fazerem a mesmíssima coisa): ele tende a misturar opiniões, teorias sem fundamento e acusações generalizadas a fatos verídicos, teorias comprovadas e acusações verdadeiras; resumindo, a misturar fato e especulação. O mágico repete 15 vezes que a moeda está na sua mão direita e, como nas 15 vezes ela estava, na 16ª ninguém descongia que já foi para a esquerda - um truque batido, mas tremendamente eficaz. Muita coisa em "Zeitgeist" é verdade. Não me admira que as pessoas vejam o filme e digam "nossa, ele tem razão!"; porque, em parte, tem. Mas ele se aproveita disto para conduzir o espectador e convencê-lo de que seu projeto é a única solução possível - e nisto não há nenhuma verdade.

Daí posso compreender o impacto do filme, e é por isso que disse que ele é perigoso. Os admiradores de "Zeitgeist" referem-se ao mesmo tipo de coisa ao qual se referiam os de "O Segredo": um "abrir de olhos", uma "experiência capaz de mudar sua vida", etc.; ambos os filmes usam o mesmo tipo de truque, mas enquanto "O Segredo" é mesquinho e dedica-se apenas a afanar o dinheiro de gananciosos com sua linha de produtos, "Zeitgeist" parece querer arregimentar sob sua bandeira cientificista, com o pretexto messiânico da "única solução possível", todos aqueles que, com razão, percebem que há algo de muito errado no mundo e gostariam de mudá-lo - justamente quem poderia, por sinal, fazê-lo. "Zeitgeist" parece-me ter a ambição de cooptar boa parte do potencial de mudança radical da sociedade, localizado em muitos de seus membros mais insatisfeitos, e transferi-lo para seu projeto medonho de sociedade ideal, e é por isso (também) que faço questão de dedicar o possível de meu tempo e esforço à tarefa de retalhar seus fraquíssimos argumentos: gostaria de ver a atenção de meus amigos e das demais pessoas interessadas num mundo melhor voltada para coisas boas. E ainda há muita coisa boa por aí.

"Zeitgeist" comete outro pecado que foi a segunda coisa ruim que reparei nele, e que não sei dizer se é ou não proposital. Se é proposital, há falsidade ideológica; se não, é sinal de muita ignorância. Acontece que o filme sempre indica a origem das correntes de pensamento que critica, situa seu surgimento, etc.: ao falar na origem do liberalismo, cita Locke e Smith; depois Hayek, Friedman, Mises para o neoliberalismo; em alguns pontos, Marx, Lênin, Stalin, Mao para o comunismo; etc. Mas quando oferece as críticas a estas correntes, e quando quer oferecer soluções a elas, e na maior parte do tempo em geral, nunca cita suas fontes - mesmo quando faz uso de conceitos conhecidíssimos. Ele quer associar a si mesmo tudo de bom, e dissociar-se de tudo que há de ruim, como se tivesse inventado, agora há pouco, todos seus conceitos e análises críticas. Em certos casos isto é tolerável num documentário que quer ser acessível e evitar parecer um trabalho acadêmico; mas "Zeitgeist" bem no começo já beira o ridículo, para em seguida tomar impulso e mergulhar nele.

Primeiro grande exemplo. Na primeira parte do filme - e que foi, para mim, a mais interessante (o que certamente tem a ver com o fato de eu conhecer muito menos de genética do que do restante dos temas do documentário) - lá pelos 26 min., os cientistas entrevistados (não vou voltar mais ainda para checar os nomes, sinto muito), para explicar os efeitos duradouros que o ambiente e a educação têm nos bebês e até antes do nascimento, referem-se a "memória explícita" e "memória implícita", e explicam: há o que "poderíamos chamar de" (em "Zeitgeist" esta expressão parece ser o código para a fraude) "memórias implícitas", que mesmo não podendo ser recordadas, têm grande influência na formação da pessoa, seu caráter e personalidade.

Assombroso! Quer dizer, então, que há todo um lado de nossa personalidade que nos é oculto, um lado ao qual não temos acesso! Que descoberta maravilhosa - como ninguém pensou nisto antes?! É quase como se os seres humanos tivessem dois lados: um que eles conseguem perceber, do qual eles têm consciência, e outro que -


E aí eu digo: Peter Joseph, camarada, e seus entrevistados, "memória implícita" e "memória explícita"? Vocês só podem estar de sacanagem! Há no mínimo 112 anos (desde a publicação de "A Interpretação dos Sonhos"), o nomezinho disto é consciente e inconsciente!

Muita gente vai ler isso e dizer que eu estou de frescura, que isto é um mero detalhe, e o que importa não é quem disse o quê, mas o quê está sendo dito. Não é por aí, e por alguns motivos.

Primeiro, porque falsidade ideológica é errado. É particularmente errado para quem estuda o assunto. É verdade que todo o conhecimento sempre toma por base conhecimento anterior; mas isto só torna mais importante reconhecer os méritos do conhecimento anterior. Não é mero detalhe, mas questão, ou de ignorância, ou de caráter - e tendo a crer que é a última alternativa, porque nunca ouvi falar de um pesquisador sério de qualquer coisa relacionada à mente humana no último século que não faça pelo menos uma boa ideia do que Freud disse. Aliás, todo mundo ouviu falar do homem, que foi um dos mais radicais e influentes pensadores da modernidade; não tomar conhecimento da teoria mais básica dele ao tratar precisamente do que ela aborda é, no mínimo, de mau gosto.

Mas o mais grave é, segundo, como já disse, maquiar um conceito velho com uma aparência nova, inclusive com mais maquiagem científica ("memórias implícitas vão direto pra hipófise" ou sei lá qual outro órgão), e fazer parecer que você o inventou, que isto é uma grande novidade da qual nunca ninguém tinha ouvido falar - só que é uma das teoria mais famosas do século passado!

Alguém também pode dizer: não é a mesma coisa, pois os cientistas do filme estão falando de um ponto de vista neurológico, e não psicológico; eles estão apresentando uma teoria nova. Mas o que eles estão apresentando é, no mínimo, uma pesquisa cuja hipótese e resultado coincidem perfeitamente com as teorias freudianas - o que, na prática, dá quase no mesmo.

Ainda assim, realmente seria um detalhe... se fosse só uma vez. Só que em 2:40hs. de filme, Joseph usa, sem dar qualquer crédito, e isto só que eu tenha percebido (e, portanto, atenho-me mais a minha área), ideias de Sócrates (com toda a dificuldade que falar disto sempre carrega), Platão, More, Locke (que ele critica tão duramente!), Comte, e, mais do que qualquer outro, Marx, todos mortos há pelo menos mais de 120 anos, todos clássicos, todos conhecidos. Aí já não é detalhe: é picaretagem.

Devemos nos orientar por conhecimentos objetivos, que sejam maiores do que a mera opinião? É o ataque que Sócrates fazia aos sofistas, 5 séculos antes de cristo! Abolir o dinheiro, que só causa mal? Platão propôs poucas décadas depois que fosse feito entre os dirigentes da República; a Utopia de More estendia a ideia a todos. Cidades planejadas, auto-suficientes e perfeitamente reguladas? Novamente, More traçava isto em detalhes. Os homens reúnem-se para satisfazer suas necessidades de maneira mais eficiente: é Locke um dos primeiros a dizê-lo. Critérios científicos devem ser usados para reger a sociedade? É a proposta de Comte e sua ciência positiva.

Quase nada do que "Zeitgeist" apresenta é novo, e em momento nenhum é transmitida ao espectador a noção de que suas propostas tenham qualquer passado, que tenham sido sugeridas por qualquer outro autor, que possam ser encontradas em outros lugares, apresentadas sob diferentes prismas e discutidas. Ele quer tomar como seu tudo que vê de bom e negar todas as alternativas; ele é o caminho e a verdade.

"Espere, mas você não explicou o que ele pegou do Marx", dirá você.

Ah, é que o Marx é um caso a parte, e vou deixar pra outro dia.

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

"Presidenta"

A coisa nem bem começou e já estou de saco cheio de "presidenta" ter virado uma espécie de bandeira do pessoal pró-Dilma, a ponto de quererem virar o jogo e chamar quem diz "a presidente" de reaça. Não é porque votei nela e porque (dizem) já se admite o verbete como gramaticalmente correto que sou obrigado a não achá-lo horrível e absolutamente incoerente; se seguirmos este rumo, como já apontaram, logo teremos "dentistos", "diplomatos", "gerentos", etc. Dizer que é uma atitude feminista também não cola - diferente de, por exemplo, evitar colocar todos os coletivos no masculino (numa sala com deputados e deputadas, chamar apenas "deputados", etc.) - porque os substantivos terminados em "e" não têm desinência de gênero, não são uma expressão da misoginia de nossa língua, que existe e, por isso mesmo, devia ser combatida com inteligência.

Se é pra promover um vocábulo novo, sinceramente prefiro defender a inclusão de "dogão" no dicionário.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Gênero, sexo, transgênero: algumas considerações genéricas

Questões relativas a gênero e identidade sexual são (felizmente) cada vez menos tabu para muitos, e discussões sobre o assunto pipocam o tempo todo. O que significa ser homem ou ser mulher, ser "mais" ou "menos" homem ou "mais" ou "menos" mulher? É "normal" ou "natural" ser homossexual (ou bi, ou trans)?

Não sou estudioso, mas como todo mundo, tenho opiniões a respeito e, ao começar a responder este post do Alexey Dodsworth, acabei escrevendo muito mais do que cabia numa resposta. Como isto me obrigou a organizar um pouquinho o que penso sobre o assunto em forma de texto, resolvi transformar o resultado nesse post aqui (que só se encaixa no espírito geral do blog pelo trocadalho do carilho em seu título).

Pra começar, vai preliminar semelhante a que ele usou em seu blog: sexo biológico e gênero não são a mesma coisa. Sexo biológico é naturalmente determinado, caracterizado por uma marca genotípica (o par de cromossomos xx ou xy) e uma série de marcas fenotípicas (genitália, forma do corpo, pelagem...). O gênero é da ordem da mente e da convenção social, não da natureza. Dizer isto significa, entre outras coisas, que ele:

1 - não corresponde à natureza, mas ao mesmo tempo é construído a partir dela: dizer que é "natural" que homens gostem de mulheres é quase tão inadequado quanto é dizer que é "natural" que meninos gostem de azul. A sexualidade, como o gosto estético (e são duas coisas que funcionam juntas), é formada socialmente, e o ato sexual não é um ato puramente natural, mas um ato social - que, para muito além da reprodução, adquire e exprime incontáveis sentidos: amor, paixão, controle, poder... Isto não pode, é evidente, significar que devemos ignorar a "base" natural sobre a qual os atos sociais são criados, p. ex. a influência dos hormônios, os impulsos reprodutores de espécie, e um sem-número de outras coisas. Mas estas coisas não explicam, nem podem explicar, a infinidade de práticas sexuais e papéis de gênero. Não há biologia (ou mesmo psicologia) que explique, sozinha, a podolatria, a coprofagia, ou mesmo coisas mais corriqueiras como a estimulação oral e a masturbação. Quem acusa os homossexuais de "crime contra a natureza", ou qualquer outra estupidez parecida, certamente nunca usou sequer um mísero neurônio de seu desocupado cérebro pensando na abominação que é dirigir um monstro de duas toneladas de metal que se alimenta de dinossauros mortos e regurgita gás carbônico, nem em nenhuma das outras atrocidades que praticamos diariamente como, digamos, assistir ao BBB. Não pensou sequer em suas próprias práticas sexuais que, para ser coerentes com a ideia de "sexo natural", deveriam excluir tudo que não significasse ejaculação dentro de uma vagina (e nisto a Igreja Católica até é coerente...).

Guardadas as devidas proporções, coisas semelhantes podem ser ditas para a identidade de gênero. A identidade masculina não é natural, mas parte de "base" natural; assim, os símbolos da masculinidade frequentemente remetem ao pênis, à ejaculação, à penetração (fenômenos naturais), associando-o, p. ex., à "atividade" (em oposição à "passividade" feminina, que recebe o pênis e seu sêmen), ao uso das armas; e daí, somando-se a um sem-número de outras características naturais, como as diferenças fisiológicas (força física, pêlo facial), que vão definir um estereótipo do homem "de verdade" (ou "bem-feito", para imitarmos o comercial do barbeador), com características que vão desde a fertilidade e tendência à poligamia à força física e abertura de latas de azeitona, passando pela barba e pelas cantadas de pedreiro - estereótipo que muda com o tempo e lugar, mas que não deixa, por isso, de exercer força tremenda. Também a identidade de gênero feminino parte de "base" natural; p. ex. a maternidade, símbolo culturalmente universal da feminilidade, que, fora do reino da ficção (comédias estreladas por Schwarznegger em destaque), permanece restrita ao sexo (e ao gênero) feminino, como uma literal barreira natural aos poderes humanos (para a infelicidade de nossa camarada Loretta); mas há também inúmeros outros estereótipos do gênero ao qual espera-se, intencionalmente ou não, que um parceiro corresponda. É concebível e perfeitamente compreensível (mas de forma alguma inevitável) que um homem se decepcione ao saber que sua parceira é transgênero simplesmente porque significará infertilidade, ou um gogó atípico, já que, aos olhos do quadro definidor de gênero, isto a torna "menos" mulher, "menos" feminina; ainda, uma mulher "inautêntica" - e a autenticidade é um significante poderoso e importantíssimo. É claro que a infertilidade não pode definir o gênero, feminino ou masculino (ou toda mulher infértil deixaria de ser considerada mulher), mas há expectativas acerca do papel social que se ligam, como ela, quase diretamente a traços biológicos.

2 - é criação social, não individual. A adequação do indivíduo ao gênero não é dada simplesmente pelo indivíduo, ou melhor, só é dada por ele no que tange a suas opiniões e ações. Ninguém é uma ilha, nem pode ignorar o fato de que se importa com a opinião alheia, mesmo que ela seja preconceituosa - se não se importasse, seria muito fácil para qualquer homossexual "sair do armário". Isto tem consequências complexas para todos os não-heterossexuais. Não avisar ao parceiro que é transgênero, p. ex., pode significar inadvertidamente expô-lo a um preconceito (ainda que injusto) que ele não necessariamente estava disposto a enfrentar. No caso do programa de tv, qualquer estalinho é difamação, porque nossa sociedade, no geral, não aceita os transgêneros (mais: abomina), ainda que aceite e acompanhe atrocidades muito maiores (como o BBB).

(mas também, se, após 10 edições do programa, alguém ainda não percebeu que entrar no mesmo é dar carta branca para a produção fazer o que quiser com sua imagem pública, merece toda a difamação do mundo)

3 - é "preconceituoso", no sentido literal de instituir significações prévias com as quais o sujeito social tentará dar sentido ao mundo - esterótipos. Somos todos, neste sentido, "preconceituosos", e não se pode taxar todo preconceito como moralmente reprovável simplesmente por sê-lo. Cabe taxar a este, por exemplo, por violar um princípio de respeito à diversidade de conduta sexual/identidade de gênero (mas que não é de forma alguma majoritariamente aceito). Estas noções mudam muito de sociedade para sociedade, mas isto não diminui em nada sua força, e não corresponder a estas expectativas, não importa com quanta legitimidade, costuma custar caro. Pensar que estamos "imunes" a este tipo de construção social também seria quase tão ingênuo quanto pensar que podemos nos colocar à parte e acima da sociedade para julgá-la. Na verdade foram estas mesmas noções, socialmente construídas, que engendraram nossas próprias noções acerca de nosso papel de gênero - o que é válido inclusive, e especialmente para, os transgêneros, que jamais se sentiriam inadequados se tivessem simplesmente construído sua ideia de gênero a partir do nada, e não sob a inescapável influência dos estereótipos sociais.

Dessa brincadeira toda tiro dois dedos de conclusões pretensiosas:

Não há - não faz sentido dizer que haja - determinidade absoluta de identidade de gênero ou comportamento sexual, porque nem nossa identidade social nem nossas ações em sociedade são absolutamente determinadas. A ideia de uma genética de homossexualidade é tão ingênua e perigosa quanto a de uma genética da criminalidade. O homossexual que alega sê-lo "por natureza" está tão errado quanto Silas Malafaia. A não ser que aceitemos a hipótese sensualista de que o homem é totalmente controlado pelos seus desejos, que não tem capacidade de agir para além deles (algo que, sinceramente, não acho que valha nem para um cachorro, que dirá para um humano), somos obrigados a admitir que a identidade de gênero e o comportamento sexual são, no melhor sentido do termo, escolhas; e que todo homossexual tem diante de si a escolha de tentar se adequar ao padrão social em detrimento de seus desejos homoeróticos, ou ceder a eles e viver uma vida de aparências, ou ainda incorporá-los a sua identidade social e enfrentar o estigma da inadequação e toda a força do preconceito. Escolhas injustas, certamente - como tantas outras que são feitas diariamente - mas escolhas.

Na mesma direção, o homo, bi ou trans que age como se esperasse que a sociedade fosse subitamente despir-se de todos os estereótipos e tratá-lo como normal, exceto quando o faz por provocação ou semelhante, arma-se de uma ingenuidade tremendamente prejudicial, especialmente para ele mesmo e para aqueles próximos dele. É claro que a sociedade é preconceituosa! É claro que ela vai tratá-lo mal por não se adequar aos estereótipos traçados por ela! E isso não vale só para os sem-caráter, mas especialmente para pessoas de bem que, apesar de suas boas intenções, foram educadas e formadas com estes estereótipos de gênero, usados por nós (sinto-me obrigado a não me excluir) como critério para separar "normal" e "anormal", "bom" e "ruim", etc. Dizer que ser gay é normal não pode significar que o é de fato, mas sim de direito: que seria o justo, mas que, na prática, não acontece. Na prática, ser gay ainda é (bastante) anormal e, pelo contrário, a rejeição aos não-heterossexuais é a regra.