quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Porque "Zeitgeist: Moving Forward" é marxismo de segunda

Como falei, Marx nesse filme é um caso à parte.

Falar do homem é, pelo menos desde 1917, muito complicado. De certa forma isso melhorou depois da Guerra Fria; por outro lado, não. Continua complicado porque, por exemplo, o título deste post continua podendo ser interpretado como se "marxista" fosse xingamento, e como se eu estivesse me alinhando com os reaças de quem o filme faz tanto esforço para se defender.

Não é, então quero deixar bem claro: Marx é um autor sensacional, um dos maiores de todos os tempo, a quem não se aplicam a imensa maioria dos rótulos que lhe são tachados. Quase todos que falam mal de Marx não tiveram realmente nenhum contato direto com ele, não fazem muita ideia do que ele realmente diz, ou simplesmente não oferece um contra-argumento à altura. Aqueles que o criticam com propriedade, dificilmente negam o respeito do qual sua obra é digna.

Do outro lado, tem o pessoal para quem "marxista" é o melhor dos elogios - quando o próprio Marx teria declarado, ainda em vida: "não sou marxista". É, no mínimo, para se pensar...

A pilhagem sem-vergonha de "Zeitgeist" em cima do arcabouço conceitual marxista é particularmente incômoda, não só pq aparece no filme inteiro, como também por ser explicitamente negada ao final dele. Eles inventam nomes novos para "economia de mercado", "valor de troca", "valor de uso", e um sem-número de outros termos, e fingem que não é com eles - fazem, inclusive, as mesmas críticas ao liberalismo (e aí fazem questão de citar livros e nomes), e apontam o mesmo tipo de solução ("de cada um segundo suas capacidades, a cada um conforme suas necessidades").

Então, é claro: "Zeitgeist" é comunista. Ele propõe a propriedade comum dos meios de produção, a abolição da forma mercadoria (que chama de... ah, sei lá, de outro nome imbecil qualquer) e até do dinheiro (sendo que este último, até onde me consta, nem Marx sugeriu). A preocupação legítima com o preconceito que os rótulos "comunista" e "marxismo" despertam, particularmente nos EUA, não pode justificar falsidade ideológica deste tamanho; e, não importa o quanto neguem, é evidente que toda a crítica feita à sociedade de mercado, no filme, tem um viés marxista bem explícito.

Então, novamente: qual o problema disso? Contanto que a mensagem se espalhe... Mas a verdade, em si, não pode ser dita pelas palavras, não está contida nelas. O que ouvimos não é o "conteúdo" da mensagem, "apenas" sua forma - a divisão mensagem-conteúdo é útil, mas, a rigor, não é verdadeira, pq nenhuma mensagem tem conteúdo; ela é forma "pura". Só o receptor pode tentar, pela interpretação, "remontar" ao conteúdo que o formulador da mensagem pretendia transmitir. Assim, a forma pela qual as coisas são ditas é o que mais pode e deve ser criticado; uma coisa mal dita costuma ser "mal" interpretada, e a intenção do autor se perde.

Particularmente, não expor as origens de seu pensamento, não fazer referências, além de deixar o receptor no escuro e dificultar o acesso dele a outras versões de mensagens semelhantes, tem uma outra propriedade retórica a qual não dei o devido destaque: ela tira a mensagem de seu contexto histórico. Isto tem, além de fazer o autor parecer o rei da cocada preta, como eu disse, uma vantagem mais ou menos legítima, de evitar que a mensagem caia em filtros do preconceito; e outra bem malandra, de evitar todas as críticas (legítimas) que as versões anteriores do mesmo tipo de pensamento sofreram.

Exemplo: aquela papagaiada de "memória implícita" que é, basicamente, o inconsciente do Freud. Por um lado, isto ajuda a vencer a resistência à psicanálise, que não é pequena, especialmente nos EUA. Por outro lado, desvincula a tal ponto o argumento de sua origem, que pode tranquilamente levar alguém a aceitar a "memória implícita" e, ao mesmo tempo, dizer que a psicanálise é uma palhaçada - quando, sem a psicanálise, aquela ideia "maravilhosa" nunca existiria! Coisa parecida acontece com Marx: alguém que assiste o filme pode muito bem achar que a luta de classes é uma bobagem, e concordar com tudo que eles disseram! O bônus? Zeitgeist parece escapar de todas as inúmeras críticas, muitas delas perfeitamente razoáveis, já feitas tanto ao marxismo quanto à psicanálise, e que se aplicam sem tirar nem por ao que eles estão dizendo. Eles inventam a roda e sobra pro espectador descobri que é melhor fazê-la de borracha do que de pedra.

Pode-se até dizer "isso tudo é válido pra você, que estuda isto, mas não é óbvio para a maioria das pessoas, que precisa de uma versão acessível a estas ideias". Ótimo: isto é mais motivo, e não menos, para mostrar a essas pessoas que há muito mais para se aprender, muito mais gente boa que já disse isso e muitas outras coisas; e outro tanto que disse o oposto, que contestou isso e disse que, por exemplo, abolir a propriedade é mais perigoso do que mantê-la, ou que é impossível, e por aí vai.

Além disto, já temos coisas acessíveis, mas muito menos divulgadas. Prefiro esta versão animada do Manifesto Comunista a toda a crítica à economia de mercado de "Zeitgeist". Surplus é uma maneira muito mais interessante de estimular a reflexão sobre o consumismo.

Pode-se alegar, também, que Zeitgeist não é marxista por duas coisas. Primeiro, porque Marx, e é difícil negá-lo, está ligado a um projeto produtivista, defende que o comunismo surgirá como uma forma de aumentar ainda mais a produção, e não apenas de distribuí-la melhor, enquanto o filme tem uma postura anti-produtivista. Segundo, e o filme trata isto como se tivesse desvalidado tudo que tinha sido pensado antes, estamos diante da possibilidade muito real do esgotamento dos recursos naturais, funcionando com um sistema econômico que prevê crescimento indefinido. São duas ótimas críticas/acréscimos; mas também já foram feitas muito antes, inclusive por ex-marxistas. Na América Latina, Edgardo Lander já apontava justamente estas duas coisas e a ligação entre elas uma boa década atrás, e mesmo então já não era exatamente novidade (infelizmente não lembro em que artigo ele o fez). A crítica ao produtivismo está em voga desde "O elogio ao ócio", do Russel, de 1932. E por aí vai, com coisas sensacionais como este artigo do Gorz sobre o automóvel.

E o que se critica no marxismo e pode ser legitimamente criticado em "Zeitgeist"? Acho que, pra falar direito, teria de fazer um novo post sobre isso. Fico com o problema de como distribuir justamente os bens, coisa que o filme propõe fazer com "uma pesquisa", como se as pessoas fossem capazes de automaticamente ter desejos e necessidades harmônicas, e essa não fosse uma das maiores dificuldades de todos os tempos - uma crítica, aliás, que se deve em boa parte à influência de Freud nos estudiosos de Marx. Olha aí porque é uma merda você não dizer de onde vêm as ideias.

Pior do que isto é a ideia de que se podem usar critérios científicos para organizar a sociedade. Este cientificismo absurdo, que é o ápice do projeto positivista, que faz crer na neutralidade da ciência (coisa que não existe), que mascara toda a disputa de poder que caracteriza a sociedade (e que eles acabaram de expor!), é tão ruim que chega a ser caricato. Eles até sugerem deixar um computador a cargo do gerenciamento de toda a produção do mundo - um negócio tão perigosamente distópico que até Hollywood já mostrou, várias vezes, que não é uma ideia tão boa quanto parece.


De resto, vale repetir algo que certamente devia ser muito mais repetido: a ciência não nos diz nada sobre o certo e o errado, nada sobre justiça. Estas são questões éticas e políticas. Não existe fórmula mágica para resolvê-las, não existe um caminho simples e mais fácil. O caminho é, justamente, o caminho da política, que o filme tanto desacredita - não a política institucional, o Estado, etc. A política como capacidade dos seres humanos, em conjunto, decidirem como querem se organizar e o que querem fazer de suas próprias vidas.

Isto significa também que, evidentemente, concordo com muita coisa que o filme defende. Sim, a economia de mercado, o fetiche da mercadoria, o consumismo ilimitado, além de nos transformar em robôs alienados, gerar violência, desigualdade, doença e morte, está caminhando para aniquilar todos os recursos do planeta e a própria espécie humana. Temos mesmo de derrubar o sistema vigente e inventar algo novo e melhor, pra ontem. Mas não o que o filme sugere - botar as coisas "na mão da ciência" não só é impossível, mas tentar fazê-lo é andar na rota da tirania, da desigualdade, enfim, piorar o que já está ruim.

Nota: Eu estava escrevendo um post muito maior sobre isso, mas percebi que não teria mais tempo hábil para fazê-lo, até porque a fúria que motivou meu primeiro post já deu uma arrefecida. Fica postado o que tenho; um dia pode ser que eu faça mais.

7 comentários:

O Rapouso disse...

Huheuheuehueh!! Gostei do marcador!!

Bom, já te expliquei algumas das críticas e das noções erradas que se tem somente vendo o filme. Infelizmente são noções possíveis, e que geram críticas como a Skynet, Terminators, etc. Felizmente a idéia não é essa, mas para se entender melhor a idéia, tem que se aprofundar mais no movimento, assim como o movimento talvez tenha que se aprofundar mais nas fontes de onde vieram suas críticas/sugestões.

O fato primordial é: tem muita gente aí descontente com o atual sistema do jeito que está. O filme possibilitou o encontro de muitos, e possibilitará mais. Se o objetivo de todos e deburrar o sistema, como fazer para que ele caia com a menor quantidade de sofrimento possível? E como fazer para daí surgir outra coisa que não seja doente, genocida e predatória nos moldes que estamos vivendo a 10.000 anos? Será que podemos sair da crítica e tentar achar uma solução? Ou não tem solução?

Unknown disse...

Bah! Tú usou o exterminador do futuro e Hollywood pra defender pq um computador não pode organizar a sociedade
Haushauhsauhs.
Engraçado, mas...
...!

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Daniel Pavanelli disse...

Cai aqui por acaso e estava buscando uma resenha sobre este documentário. Qual motivo? Assisti os dois últimos documentários de Peter Joseph, e ambos despertaram primeiro uma sensação de libertação do pensamento, e depois um sentimento de que tudo não passava de uma propaganda socialista bem disfarçada. De tudo que vi nos documentários, muita coisa tendenciosa e muita coisa óbvia (mas óbvia demais para nos darmos conta por nós mesmos), o único, ÚNICo pensamento que ficou para mim foi uma citação: onsiderando o que o mundo é hoje, com toda miséria, conflito, brutalidade destrutiva, agressão e assim por diante... O Homem ainda é o mesmo de antes. Ainda é bruto, violento, agressivo, acumulador, competitivo... Ele construiu uma sociedade nestes termos.

Um abraço

Unknown disse...

Gostei do seu post, só gostaria de fazer algumas observações. O Zeitgeist seria (ao menos o mais próximo que pode compará-lo com o marxismo) um socialismo utópico new age.

Pelo desenvolvimento da crítica da economia política, Marx demonstra o caráter histórico do dinheiro. Este surge como decorrência da exteriorização da contradição imanente à cada mercadoria (valor e valor de uso). O dinheiro é o deslocamento do valor (de troca) do corpo de cada mercadoria para uma única mercadoria, que passa a ser a medida de todas as trocas. Acabando a produção de mercadorias não hã o que se falar em dinheiro (que é mera medida do tempo de trabalho abstrato contido em cada mercadoria).

O marxismo vai frontalmente contra o último post aqui. O homem não tem uma "natureza", ele é o fruto de suas relações sociais. Mundando estas relações, muda-se a "natureza" do homem.

Bom, a coisa boa deste filme é que ele pelo menos coloca uma pulga atrás da orelha das pessoas, e, prefiro (ao menos enquanto eles não descambam para a direita) um socialista utópico new age do que alguém conformado com o mundo como ele é, alguém que nem sequer tem perguntas.

abraços

Thiago Lion

Unknown disse...

coitado desse bloger...
essa furia só mostra como um simples homem que se vê preso a classicos paradigmas de sua epoca, é incapaz de aceitar novas ideias.
assim como os pensadores da epoca do iluminismo, negaram incessantemente as novas visões de mundo que estavam surgindo.

Heitor disse...

Adoro ideias novas, mas o documentário basicamente não as tem. O que ele tem é, no geral, maquiagem para doutrinas clássicas que já são discutidas há ao menos um século.
Mesmo que houvesse ideias novas, porém, isto por si só não as tornaria boas. Há ideias novas que fazemos bem em rejeitar - pense-se no nazismo, a grande novidade na Alemanha de 1930.
Em tempo: Thiago, não usei natureza no sentido de natureza humana, mas no biológico, i. e., o ecossistema terrestre. Ou, para roubar talvez inadequadamente a expressão dos Manuscritos de 1844, aquilo que é para o homem como que seu "corpo inorgânico".