sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Gênero, sexo, transgênero: algumas considerações genéricas

Questões relativas a gênero e identidade sexual são (felizmente) cada vez menos tabu para muitos, e discussões sobre o assunto pipocam o tempo todo. O que significa ser homem ou ser mulher, ser "mais" ou "menos" homem ou "mais" ou "menos" mulher? É "normal" ou "natural" ser homossexual (ou bi, ou trans)?

Não sou estudioso, mas como todo mundo, tenho opiniões a respeito e, ao começar a responder este post do Alexey Dodsworth, acabei escrevendo muito mais do que cabia numa resposta. Como isto me obrigou a organizar um pouquinho o que penso sobre o assunto em forma de texto, resolvi transformar o resultado nesse post aqui (que só se encaixa no espírito geral do blog pelo trocadalho do carilho em seu título).

Pra começar, vai preliminar semelhante a que ele usou em seu blog: sexo biológico e gênero não são a mesma coisa. Sexo biológico é naturalmente determinado, caracterizado por uma marca genotípica (o par de cromossomos xx ou xy) e uma série de marcas fenotípicas (genitália, forma do corpo, pelagem...). O gênero é da ordem da mente e da convenção social, não da natureza. Dizer isto significa, entre outras coisas, que ele:

1 - não corresponde à natureza, mas ao mesmo tempo é construído a partir dela: dizer que é "natural" que homens gostem de mulheres é quase tão inadequado quanto é dizer que é "natural" que meninos gostem de azul. A sexualidade, como o gosto estético (e são duas coisas que funcionam juntas), é formada socialmente, e o ato sexual não é um ato puramente natural, mas um ato social - que, para muito além da reprodução, adquire e exprime incontáveis sentidos: amor, paixão, controle, poder... Isto não pode, é evidente, significar que devemos ignorar a "base" natural sobre a qual os atos sociais são criados, p. ex. a influência dos hormônios, os impulsos reprodutores de espécie, e um sem-número de outras coisas. Mas estas coisas não explicam, nem podem explicar, a infinidade de práticas sexuais e papéis de gênero. Não há biologia (ou mesmo psicologia) que explique, sozinha, a podolatria, a coprofagia, ou mesmo coisas mais corriqueiras como a estimulação oral e a masturbação. Quem acusa os homossexuais de "crime contra a natureza", ou qualquer outra estupidez parecida, certamente nunca usou sequer um mísero neurônio de seu desocupado cérebro pensando na abominação que é dirigir um monstro de duas toneladas de metal que se alimenta de dinossauros mortos e regurgita gás carbônico, nem em nenhuma das outras atrocidades que praticamos diariamente como, digamos, assistir ao BBB. Não pensou sequer em suas próprias práticas sexuais que, para ser coerentes com a ideia de "sexo natural", deveriam excluir tudo que não significasse ejaculação dentro de uma vagina (e nisto a Igreja Católica até é coerente...).

Guardadas as devidas proporções, coisas semelhantes podem ser ditas para a identidade de gênero. A identidade masculina não é natural, mas parte de "base" natural; assim, os símbolos da masculinidade frequentemente remetem ao pênis, à ejaculação, à penetração (fenômenos naturais), associando-o, p. ex., à "atividade" (em oposição à "passividade" feminina, que recebe o pênis e seu sêmen), ao uso das armas; e daí, somando-se a um sem-número de outras características naturais, como as diferenças fisiológicas (força física, pêlo facial), que vão definir um estereótipo do homem "de verdade" (ou "bem-feito", para imitarmos o comercial do barbeador), com características que vão desde a fertilidade e tendência à poligamia à força física e abertura de latas de azeitona, passando pela barba e pelas cantadas de pedreiro - estereótipo que muda com o tempo e lugar, mas que não deixa, por isso, de exercer força tremenda. Também a identidade de gênero feminino parte de "base" natural; p. ex. a maternidade, símbolo culturalmente universal da feminilidade, que, fora do reino da ficção (comédias estreladas por Schwarznegger em destaque), permanece restrita ao sexo (e ao gênero) feminino, como uma literal barreira natural aos poderes humanos (para a infelicidade de nossa camarada Loretta); mas há também inúmeros outros estereótipos do gênero ao qual espera-se, intencionalmente ou não, que um parceiro corresponda. É concebível e perfeitamente compreensível (mas de forma alguma inevitável) que um homem se decepcione ao saber que sua parceira é transgênero simplesmente porque significará infertilidade, ou um gogó atípico, já que, aos olhos do quadro definidor de gênero, isto a torna "menos" mulher, "menos" feminina; ainda, uma mulher "inautêntica" - e a autenticidade é um significante poderoso e importantíssimo. É claro que a infertilidade não pode definir o gênero, feminino ou masculino (ou toda mulher infértil deixaria de ser considerada mulher), mas há expectativas acerca do papel social que se ligam, como ela, quase diretamente a traços biológicos.

2 - é criação social, não individual. A adequação do indivíduo ao gênero não é dada simplesmente pelo indivíduo, ou melhor, só é dada por ele no que tange a suas opiniões e ações. Ninguém é uma ilha, nem pode ignorar o fato de que se importa com a opinião alheia, mesmo que ela seja preconceituosa - se não se importasse, seria muito fácil para qualquer homossexual "sair do armário". Isto tem consequências complexas para todos os não-heterossexuais. Não avisar ao parceiro que é transgênero, p. ex., pode significar inadvertidamente expô-lo a um preconceito (ainda que injusto) que ele não necessariamente estava disposto a enfrentar. No caso do programa de tv, qualquer estalinho é difamação, porque nossa sociedade, no geral, não aceita os transgêneros (mais: abomina), ainda que aceite e acompanhe atrocidades muito maiores (como o BBB).

(mas também, se, após 10 edições do programa, alguém ainda não percebeu que entrar no mesmo é dar carta branca para a produção fazer o que quiser com sua imagem pública, merece toda a difamação do mundo)

3 - é "preconceituoso", no sentido literal de instituir significações prévias com as quais o sujeito social tentará dar sentido ao mundo - esterótipos. Somos todos, neste sentido, "preconceituosos", e não se pode taxar todo preconceito como moralmente reprovável simplesmente por sê-lo. Cabe taxar a este, por exemplo, por violar um princípio de respeito à diversidade de conduta sexual/identidade de gênero (mas que não é de forma alguma majoritariamente aceito). Estas noções mudam muito de sociedade para sociedade, mas isto não diminui em nada sua força, e não corresponder a estas expectativas, não importa com quanta legitimidade, costuma custar caro. Pensar que estamos "imunes" a este tipo de construção social também seria quase tão ingênuo quanto pensar que podemos nos colocar à parte e acima da sociedade para julgá-la. Na verdade foram estas mesmas noções, socialmente construídas, que engendraram nossas próprias noções acerca de nosso papel de gênero - o que é válido inclusive, e especialmente para, os transgêneros, que jamais se sentiriam inadequados se tivessem simplesmente construído sua ideia de gênero a partir do nada, e não sob a inescapável influência dos estereótipos sociais.

Dessa brincadeira toda tiro dois dedos de conclusões pretensiosas:

Não há - não faz sentido dizer que haja - determinidade absoluta de identidade de gênero ou comportamento sexual, porque nem nossa identidade social nem nossas ações em sociedade são absolutamente determinadas. A ideia de uma genética de homossexualidade é tão ingênua e perigosa quanto a de uma genética da criminalidade. O homossexual que alega sê-lo "por natureza" está tão errado quanto Silas Malafaia. A não ser que aceitemos a hipótese sensualista de que o homem é totalmente controlado pelos seus desejos, que não tem capacidade de agir para além deles (algo que, sinceramente, não acho que valha nem para um cachorro, que dirá para um humano), somos obrigados a admitir que a identidade de gênero e o comportamento sexual são, no melhor sentido do termo, escolhas; e que todo homossexual tem diante de si a escolha de tentar se adequar ao padrão social em detrimento de seus desejos homoeróticos, ou ceder a eles e viver uma vida de aparências, ou ainda incorporá-los a sua identidade social e enfrentar o estigma da inadequação e toda a força do preconceito. Escolhas injustas, certamente - como tantas outras que são feitas diariamente - mas escolhas.

Na mesma direção, o homo, bi ou trans que age como se esperasse que a sociedade fosse subitamente despir-se de todos os estereótipos e tratá-lo como normal, exceto quando o faz por provocação ou semelhante, arma-se de uma ingenuidade tremendamente prejudicial, especialmente para ele mesmo e para aqueles próximos dele. É claro que a sociedade é preconceituosa! É claro que ela vai tratá-lo mal por não se adequar aos estereótipos traçados por ela! E isso não vale só para os sem-caráter, mas especialmente para pessoas de bem que, apesar de suas boas intenções, foram educadas e formadas com estes estereótipos de gênero, usados por nós (sinto-me obrigado a não me excluir) como critério para separar "normal" e "anormal", "bom" e "ruim", etc. Dizer que ser gay é normal não pode significar que o é de fato, mas sim de direito: que seria o justo, mas que, na prática, não acontece. Na prática, ser gay ainda é (bastante) anormal e, pelo contrário, a rejeição aos não-heterossexuais é a regra.

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