terça-feira, 13 de abril de 2010

Aristóteles e amizade entre os gatos

Vamos começar o texto com uma premissa meio boçal: um monte de coisas, em geral do tipo mais importante, nunca pode ser realmente explicada. Todo mundo sabe disso, de um jeito ou de outro: a explicação até ajuda a entender, às vezes muito, mas no fim das contas, ou entende-se entendendo, sabe-se lá como, ou não, e cada um entende do seu jeito (mas com alguma coisa em comum?), portanto vindo a explicar do seu jeito para que o outro tente entender (até onde se pode falar em entendimento e não em criação de sentido próprio, etc.), e todos esses dilemas pedagógicos e epistemológicos que, a princípio, devem permanecer fora deste espaço pouco sério - como, aliás, todo traço de metodologia e rigor acadêmico. O que não me impede de irresponsavelmente usar Aristóteles nele.

Tinha uma coisa que o homem fala à qual eu nunca tinha prestado a devida atenção (e o que se vai fazer? Impossível prestar atenção à tudo), possivelmente porque nunca entendi, ou não entendi porque não prestei atenção e, francamente, a ordem não interessa. Ele diz, no mesmo trecho, primeiro, que pais e filhos sentem, naturalmente, amizade um pelo outro, e logo em seguida, que o mesmo sentimento pode ser visto nas aves e na maioria dos demais animais (vale sempre notar, a palavra que ele usa e traduzimos por amizade, "philia", velha conhecida por aglutinações bem-quistas do português como "pedofilia" e "necrofilia", não é bem "amizade", mas aqui a diferença é sutil o bastante pra não fazer diferença). Se não prestei a devida atenção por muito tempo, provavelmente foi por que não ligava muito para bichinhos, por um lado, ou porque simplesmente não concordava com a ideia de amizade entre desiguais - e é o próprio Aristóteles quem diz, antes e depois do trecho em questão, que a amizade se dá primordialmente entre iguais.

O resultado é que não entendi merda nenhuma e deixei o trecho de lado, atribuindo o desentendimento às dificuldades da tradução. Isto, aliás, é um troço engraçado: depois que nos damos minimamente conta da dimensão das dificuldades de adaptar um texto como esse, rapidamente fica fácil supor obstáculos intransponíveis onde eles não necessariamente existem; ou seja, na dúvida, deve ser problema de tradução. No caso, claro, minha cabeça é que estava torta. Basta andar um pouco e o autor mesmo explica como, embora a amizade seja baseada na igualdade, existe entre os desiguais.

"Em todas as amizades que envolvem desigualdade, o afeto também deve ser proporcional: a melhor das duas partes, por exemplo, ou a mais útil ou superior de qualquer outra maneira, conforme o caso, deve receber mais afeto do que dá, pois quando o afeto é proporcional ao mérito estabelece-se, de certa forma, uma igualdade, vista como uma característica essencial da amizade." (E.N., 1158b, 24-29)

De minha parte, sempre tive essa intolerância besta com este trecho que, como outros do autor, busca estabelecer certa hierarquia entra as pessoas e seres em geral, no estilo governantes > governados, homens > mulheres, homens livres > escravos, etc. Mas, cacetada, ele viveu no séc, IV A.C. e, se você vivesse, quase certamente pensaria da mesma forma, então dê-se o devido desconto ao homem; deixemos o quiprocó da superioridade-inferioridade pra lá enquanto tento explicar minha (inexplicável) interpretação deste trecho e, mais importante, do assunto que ele trata, por sinal desenvolvida esta madrugada sem a ajuda de nenhuma outra explicação - mas de duas bichaninhas.

Rápida intervenção explicativa. Dia 23 de dezembro do ano passado uma gata abandonada veio dormir do lado da porta de nossa casa, esquálida, bigodes cortados e barriguda. Sem saber se eram vermes ou filhotes, pegamos a bichinha, eu e minha mulher, para ficar por aqui até ela melhorar/ter a cria, e depois dar para minha sogra, que já queria outra gata, mesmo. Eram filhotes, claro, e Natalina teve, na terça de carnaval, 3 filhotinhas, que chamamos de Maia, Electra e Mérope; fomos cuidando das quatro, isoladas na varanda aqui de casa, enquanto tentávamos arrumar alguém pra adotar essa gataria toda, o que, eventualmente, aconteceu.

Ontem, o primeiro casal de adotantes veio, inicialmente para levar apenas uma, e acabou carregando Maia e Mérope. Quando cheguei em casa mais tarde, já quase de madrugada, ouvi os miados familiares da filha restante e sua mãe e, quase por reflexo, fui pegar água e comida para encher seus potes; mas, quando cheguei à varanda, vi que ainda estavam cheios. Sentando-me junto a elas, entendi que, era óbvio, não estavam miando nem por fome, nem por sede, mas de aflição, de solidão, de medo: onde estavam as outras duas? Foram mortas, feridas, devoradas? Elas voltarão algum dia? E nós, vamos ficar aqui - ou somos as próximas (e são)? A incapacidade animal de formular seus sentimentos em palavras, quem tem bicho sabe, não nos impede de interpretá-los e compreendê-los.

Fiquei com elas na varanda por um tempo. Observei Electra, miante, esfregando-se em mim, na mãe, sem parar, e reparei que elas se afagavam, lambiam, etc., muito mais do que antes. Pouco depois, e desde então até agora, vi que estão sempre abraçadas, a mãe cobrindo a filha, aquecendo-a. Elas são mãe e filha, e seu afeto é desigual, dado de maneira desigual, mas a todo momento vi, tão claramente, como são igualadas por ele e por sua situação: são duas gatas, sozinhas, com medo frente ao desconhecido, habitando o mesmo espaço, partilhando do mesmo afeto e confiança - que, por sinal, por hora, é o que lhes resta.

Não estou contando esta historinha para sensibilizar ninguém para o drama dos animais abandonados (embora não pretenda impedi-los, caso queiram) ou discutir o assunto. Até porque, levando-se tudo em conta, é uma história em que tudo deu certo, todos os animais abandonados estão prestes a encontrar abrigo, gozam de saúde, etc.; e temos muitas outras desgraças com as quais nos sensibilizar. Estou partilhando a mesma porque vi valor nela como exemplo do que diz Aristóteles com relação aos animais e, de forma mais abrangente, como analogia para toda a ideia da amizade e do afeto como equalizadores.

Se podemos dizer que qualquer animal é capaz de amizade, com todas as devidas proporções guardadas, então Electra e suas irmãs eram, certamente, amigas. E também ela e sua mãe, como são, analogias devidamente aplicadas, mães, pais e filhos em toda parte. Mas também, e talvez o mais importante, podem ser quaiquer pessoas em quaisquer circunstâncias, pois partilhamos sempre um mínimo de coisas em comum, como partilham agora Natalina e Electra: estamos vivos, estamos sós, tememos o sem-número de coisas que desconhecemos, habitamos o mesmo espaço, etc.

A interpretação certamente extrapola as intenções do autor, imagino eu. O que é ótimo, ainda que não absolutamente, até porque é necessário para se pensar. Mas me agrada esta ideia: de que, mesmo com toda a diferença, com toda a desigualdade, teremos sempre o suficiente em comum para que a amizade, onde ela consegue surgir, de certa forma nos iguale.

Um comentário:

Simply Mari disse...

Coincidência ou não comprei hoje no shopping rua o Aristóteles da coleção Os Pensadores. Meio raro.

A vida doméstica não domesticada... contemplativa e cheia de afetos. Miaaau...