É, em geral, sabido por quem convive comigo que sempre tive asco considerável de reality shows em geral e do BBB em particular. Desde que venho convivendo com minha digníssima esposa, todo início de ano, porém, isto se tornou motivo de conflito - pois entre seus poucos defeitos, está o hábito de assistir assiduamente ao programa, procurando sempre me levar para o lado negro da programação da TV aberta, o que eu recusei com apenas uma ressalva: que um dia eu deveria assistir a esta porcaria para poder falar mal dela com propriedade.
Este dia chegou no início do ano, quando, lá pelo 4º programa, decidi que era a hora de dizer alguma coisa sobre ele por escrito (falar eu sempre falei) com um mínimo de consistência, sentei-me ao lado de minha mulher e passei a fazê-lo sempre que pude, durante o horário do programa. No começo, pensei que falaria apenas ao final do programa; de lá pra cá, sob sugestões, mudei de ideia, e decidi falar ao longo da duração do show, para não deixar escapar o que penso de cada etapa, como novato no assunto; pena ter decidido assim tarde, mas melhor do que a alternativa.
Comecemos do começo: hoje, ao menos em nosso país, Big Brother Brasil é o reality show por excelência, estabelecido como o de maior sucesso, impacto, influência, duração, e, consequentemente, o modelo a ser batido. Mas quem é capaz de explicar o que é um reality show? Consequentemente, quem é capaz de explicar, afinal, a premissa de Big Brother, o jogo?
A resposta aparentemente mais óbvia, "reality show é um programa de televisão que mostra a realidade", é incrivelmente frágil. Reconstituições, documentários e noticiários "mostram a realidade", ao menos no sentido de não pretenderem produzir ficção, criar uma história. Mas todo bom documentarista sabe que esta é uma linha que nunca pode ser definitivamente traçada, e que toda reconstituição ou relato é, na melhor hipótese, a exposição de um (ou mais) ponto(s) de vista, e a criação de uma história que tem por função tal exposição, a partir do registro da realidade mediado pela imagem e pelo som. Até onde registro e realidade são efetivamente equivalentes, aspectos diferentes da mesma coisa, ou iguais, é assunto de uma complexidade assustadora - e, não por acaso, um dos muitos temas tão bem explorados por Orwell (que, dizem, levanta de sua tumba e devora o coração de um telespectador de Big Brother a cada noite de paredão) em 1984. O assunto é bem grande para nosso caminhãozinho, então, ao menos por hora, deixemos este monte de areia em paz, e voltemos ao programa.
Se não é tão óbvio dizer o que é um reality show, é muito simples dizer que alguma coisa o diferencia da maioria dos demais gêneros televisivos. Mas é, de novo, difícil dizer o que é; geralmente, diz-se que é porque não há, supostamente, um roteiro, portanto não há imitação de eventos ideais, não há mimésis, mas somente um jogo realmente acontecendo, no qual participantes supostamente comuns são lançados, e durante o qual são filmados. O reality, então, seria por mostrar, não uma imitação da vida, mas um trecho da vida propriamente dita, da "verdadeira" vida, "genuína" em dois aspectos: primeiro, por ser, supostamente, o retrato de pessoas "comuns" em situações "comuns", e não personagens em situações incomuns e extraordinárias; segundo, porque, não sendo fruto de planejamento e atuação, o programa seria capaz de mostrar a "face oculta" das pessoas, despidas de suas máscaras.
O primeiro aspecto é, por um lado, tão evidentemente falso que sequer parece merecer discussão: ainda que se possa disputar o quanto os participantes de um reality como o BBB sejam "comuns", é evidente que a situação em que se encontram é tão extraordinária quanto deplorável, asquerosa, humilhante, uma gaiola humana na qual se entra voluntariamente pela oportunidade de fama passageira e dinheiro; até porque um programa que não mostre absolutamente nada de extraordinário não tem razão de ser, nem razão para ser assistido. Entretanto extraordinária não pode querer dizer, em absoluto, sem relação com o cotidiano ou sem nenhum sentido forte para o grande público; de fato, por mais de um ângulo o reality show é, por excelência, mimético. Mas volto a isto outro dia.
Já a face oculta... a esse respeito, assistir ao programa só fez reforçar minha opinião de 10 anos atrás, quando pela primeira vez vi um trecho dele; uma ideia que desencavei ao ouvi um comentário da Tessália, ao sair da casa, que é um resumo de boa parte do que é dito em todas as entrevistas ao sair da casa: "Talvez eu não tenha sido eu lá dentro" (resposta só superada em frequência pela sua oposta, "acho que fui eu mesmo demais"). O programa parece mesmo ser essa busca tosca pelo "verdadeiro eu" dos participantes, e o participante que melhor convence estar mostrando o seu "verdadeiro eu" é sempre sério candidato à vitória. É uma lógica falaciosa que parece querer dizer: "se acompanharmos a rotina de alguém em toda sua intimidade, se o acompanharmos tomando banho, cozinhando, enfim, o tempo todo, e numa situação limite, em que seus parâmetros morais são postos à prova, o verdadeiro eu dele virá à tona". Mas falaciosa precisamente no sentido do senso comum, no estilo da expressão "na hora do vamos ver": "na hora do vamos ver, será que ele será honesto? Será que continuará meu amigo?", tratando esta criatura, desta hora, como mais verdadeira do que as outras.
Não é que esta crença não tenha nenhuma razão de ser, mas ela é tremendamente falsa em pelo menos dois níveis. Primeiro, porque ninguém, ninguém age normalmente sabendo que está sendo observado. Procurar alcançar um estado de aparente normalidade enquanto observado é uma das muitas faces do ofício do ator, e mesmo os melhores entre eles sabem que, ainda que convençam seus espectadores de que agem normalmente, não agem, apenas atuam segundo uma normalidade criada para um personagem. O argumento ocasional contra isto é o de que ninguém seria capaz de sustentar uma atuação por meses seguidos, 24 hs por dia, todos os dias; de que, como os seguimos em sua intimidade, etc., o "verdadeiro eu" vai acabar escapulindo e as pessoas, se revelando. E é fato que há uma espécie de revelação, até porque há um exame, muito aprofundado e específico (outro assunto que fica para uma próxima oportunidade), mas isto é muito diferente de uma revelação "espontânea" do "eu", até porque, e aí nosso segundo nível, esse negócio de "verdadeiro eu" não existe.
Não é uma afirmação tão rasa quanto pode parecer, mas que, igualmente, pode ser entendida e explicada com muita simplicidade: não existe "eu verdadeiro" porque ninguém é uma ilha, e a identidade é formada a partir das relações dos outros conosco e suas impressões sobre nós, a começar por coisas primárias como o nome. Somos sempre atores sociais e estamos sempre exercendo papéis sociais, o que significa exatamente modificar nossas ações segundo as expectativas alheias ou, mais precisamente, o que imaginamos que elas sejam; isto vale até mesmo quando estamos sozinhos. Atuar o tempo todo não é nem surpreendente, nem muito menos impossível, mas a regra para todo ser humano. E Tessália, como todos os demais participantes e boa parcela do público, se engana ao dizer que "não foi ela mesma lá dentro", porque, evidentemente, isto não pode ser feito.
Ao mesmo tempo, porém, sua fala traduz algo muito válido: a ideia de que, submetida àquela experiência, ela se viu tomando atitudes muito diversas das que considerava próprias à sua pessoa, isto é, que falhou em manter um sentimento de identidade ao longo do processo e, mais importante, falhou em passar esta imagem de identidade coesa e desejável para o grande público. Pois, evidentemente, é isto acima de qualquer outra coisa que define o vencedor: a imagem que ele consegue passar de sua personalidade, de seu caráter, para o espectador, de maneira que leve a uma identificação mútua, à torcida e, consequentemente, ao voto. É, resumindo, a habilidade de parecer uma "boa pessoa" mesmo numa situação em que a faca nas costas é obrigatória; um jogo de convencimento e de produção de aparências.
Não é isto que torna BBB uma forma de entretenimento deplorável. A vida em sociedade é sempre produção de aparências. O problema é o tipo de aparência que ela preza e a situação extraordinária que estabelece como "normal" - precisamente, o tipo de situação na qual uma facada nas costas é a regra invariável e a hipocrisia é a norma.
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Falo mais em breve...
terça-feira, 9 de fevereiro de 2010
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